segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Uma vela e um abajour

Hoje eu não vivi, não vi o dia e o dia também não me viu, hoje o dia foi adiado e o tempo não me temperou.
O dia me adiou e eu, eu odiei o dia.
Vontade de chorar um choro engasgado, só fiz uma coisa importante hoje; comprei uma vela e um abajour.
A vela era para o filtro, pra se beber água nova, o abajour era para a leitura, pelo mesmo motivo.
Abri a vela e lancei n'água, e com a força de tudo que é novo três garrafas logo se encheram, duas garrafas brancas e uma girafa vermelha.
A vela ascendeu à plenitude de purificação, jorrava água limpa enquanto eu pensava qual seria minha sede
Olhei para a vela velha e me identifiquei, trocada por já estar cheia de impurezas, rezei pela sua alma.
Porque sou mesmo uma máquina de escrever, de 1987, dessas lentas,trombolhos e barulhentas, que dão todos os defeitos na fita mas ainda mandam algumas letras, ultrapassada sem graça, que ninguém mais quer
Sou mesmo, um pedaço de pano que mau me cobre, que deixa meus pés pra fora, querendo cobrir o mundo
Sou mesmo uma mala antiga, sem rodinhas, que nos obriga a carregar o peso
Sou um picadeiro sujo, um brinquedo à corda, um baú de madeira nos fundos de um teatro.
O abajour era todo branco, tomara que ajude a clarear, coloquei no quarto para ler na cama e sonhar antes de dormir.
Hoje eu não vivi e o dia era triste como o canto de um abajour, não vivi o dia que era como a água do filtro de vela nova, sem cor, sem cheiro e sem sabor.


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